Entrevista de Vincent Rosenblatt, criador da Olhares do Morro, por Ines Ruiz de PhotoEspanha (PHE 2011). (ler a versão em Espanhol) – realizada no âmbito de Trasatlantica, seminário la fotografía como vínculo social.
Olhares do Morro & Agencia Olhares
– Ines Ruiz : Como começou a Agência Olhares ? De onde surgiu a ideia ?
– Vincent Rosenblatt : A Agencia Olhares é um desdobramento, uma evolução da associação Olhares do Morro, projeto iniciado em 2002 na favela Santa Marta, no Rio de Janeiro.
O intuito inicial : sabendo que a favela é “o lugar” da invenção permanente de uma boa parte da cultura brasileira (gerações de artistas brasileiros e internacionais sabem disso) o espaço dado na sociedade em particular na mídia – era restrito aos retratos da violência, do trafico e das chacinas, tudo isso sobre-exposto na imprensa e presente nas mentes do publico. Mas, se isso é uma realidade, é pouco coisa ao lado da riqueza social e de todos os acontecimentos cotidianos dos morros do Rio.
A criação do projeto veio do desejo de reduzir os muros mentais, abrir janelas “no asfalto” nos espaços ditos “nobres” da cidade para o publico conhecer e se abrir a riqueza,complexidade e energia que a juventude e população das favelas possuem. O espaço de criação fotográfico “Olhares do Morro” foi concebido como uma mediação neste processo de longo prazo.
Promover uma estratégia coletiva de afirmação visual das favelas do Rio junto com os moradores fazia infinitamente mais sentido do que fotografar sozinho o território sensível da favela
Imaginei formar uma rede de correspondentes fotografando dentro de suas comunidades, base para uma futura agência alternativa, podendo responder internacionalmente à demanda de imagens do Rio de Janeiro, e cujo acervo seria consultável pela Internet.
Dai surge a Agencia Olhares, que hoje integra este acervo, mas também representa um fotojornalismo engajado e autoral, proveniente do mundo todo, para o Mercado editorial brasileiro.
Com a Agencia, não se trata mais de apenas um “gueto” de fotógrafos das favelas, mais sim, deles serem incluídos num fluxo globalizado de fotógrafos que dividem valores afirmadas e olhares peculiares… Essa é a verdadeira igualdade que sonhei alcançar para os fotógrafos das favelas : serem apenas fotógrafos, e não mais “jovens beneficiados por um projeto social”…
– Ines Ruiz : a Olhares trabalhava com jovens oriundos das favelas do Rio. Qual é o contexto econômico e social desta população ?
– V.R. : Queria apresentar o local onde o projeto nasceu e se consolidou como associação cultural – uma década atras, não se falava de UPP (Unidade de Policia Pacificadora) e a realidade e o contexto eram outros..
O morro de Santa Marta tem aproximadamente 12.000 habitantes, ocupa uma posição central no bairro de Botafogo e dispõe de vistas excepcionais sobre o Pão de Açúcar e Flamengo de um lado, Copacabana e até a Lagoa do outro. Situado aos pés do Cristo Redentor, o morro recebeu numerosos visitantes ilustres, da Rainha da Inglaterra a Michael Jackson, que nele rodou seu clipe « They don´t care about us ». Além da quadra de Samba, seu hip-hop e seus afrescos murais, o Morro é famoso também pela riqueza de suas iniciativas sociais e ligadas aos direitos humanos.
Cidade dentro da cidade, ela não tem menos de 80 micro-comércios, armazéns, botequins, salões de cabeleireiro e de beleza. No inicio do projeto, em 2002, a Associação de Moradores colocou à disposição da Olhares do Morro o antigo posto de saúde da comunidade, amplo local que respondeu inicialmente a todas as exigências práticas do projeto – que recebeu uma acolhida entusiasta dos moradores. Depois mudamos nos por outro local na favela, e finalmente para um espaço no centro antigo da cidade em 2006 – onde pudemos receber melhor jovens de outras favelas e potenciais clientes.
Quando começamos a trabalhar ali, a favela estava sob domínio do trafico e sofria muito da ação da policia, em particular de policiais corruptos e violentos.
Os jovens que se assumiam como “fotógrafos da comunidade” tenham que ter a coragem de afirmar-se frente aos meninos armados do trafico, num lugar onde a fotografia, em particular o fotojornalismo, é percebido como aliado de uma imprensa que somente serve os interesses e o ponto de vista das classes mais abastecidas.
Desde 2009, o Santa Marta recebeu a primeira Unidade de Policia Pacificadora, e não tem mais jovens moradores armados.
Porém para o fotografo Ivanildo Carmo dos Santos, um dos primeiros alunos da Olhares do Morro, hoje representado pela Agencia Olhares, que conquistou seu próprio espaço para fotografar do tempo dos traficantes, foi um pouco árduo ter a mesma liberdade quando a “nova policia” chegou para “pacificar” a favela. Enquanto a policia e seu departamento de comunicação abria todas as portas para a imprensa estrangeira, um fotografo negro da própria comunidade estava sendo barrado. Felizmente é uma situação que já conseguimos melhorar bastante, com dialogo com a policia.
Sobre a população que compõe as favelas : cada uma das mais de mil favelas tem uma historia, e uma população de origem diferente. Algumas provém dos antigos quilombos (vilas de escravos fugitivos, em busca de liberdade), outras da imigração do Nordeste pobre do pais, e algumas da mistura dessas duas origens, além de uma classe media baixa empobrecida que se refugiou ali por não poder assumir o custo da vida do mercado legal.
Em cada favela, existe também uma pirâmide social diversa, entre de um lado pessoas que nem possuem documentos de identidade, um proletariado excluído – e no topo, um pequena classe media bem modesta mas que tem todo o conforto moderno, eletro domésticos, TVs de LCD, home theater, internet banda larga: o que falta mesmo é terem os mesmos direitos humanos de quem vive no “asfalto”.
De 2002 a 2006, mantenhamos atividade no Santa Marta. Mas a profissionalização progressiva dos jovens, o ingresso de jovens oriundos de varias outras favelas (Rocinha, Vidigal, Pereira..) criou a necessidade de aproximar-se do mercado, abrir um ateliê num espaço neutro e mais acessível para os nossos clientes, colecionadores, editores de fotografia. Dai mudamos para o bairro da Lapa.
Eu quis encorajar a conquista e a circulação dos jovens em bairros diferentes, apresentarem -se para pessoas oriundas de outros horizontes.
A partir de 2008, a associação Olhares do Morro esta em recesso, apenas continua sua energia e filosofia através da Agencia Olhares, que representa o seu acervo e os jovens que se profissionalizaram.
Estamos pensando de qual forma reabrir, e sobretudo financiar novas atividades, sem depender de mais de recursos públicos extremamente aleatórios, que dependem da boa vontade das empresas em utilizar a renuncia fiscal, através das leis de incentivo a cultura…
O objetivo não é abrir mais ateliê de atividades “ocupacionais” mais detectar jovens talentos, e poder ajudar jovens que querem se expressar com a fotografia e profissionalizar-se, mas faltam oportunidades. Por isso a Agencia Olhares sempre mantém a porta aberta, preste a acolher individualidades motivadas e promissoras.
– I. R. : Ateliês e workshop de fotografia eram oferecidos, assim que participação em exposições para esses jovens. Qual programas concretos de formação foram desenvolvidos para eles?
V.R. : Os encontros nos workshop eram coletivos, porém com acompanhamento e escuta individual : no ateliê, o mínimo de técnica estava transmitida – o importante eram o ensaios, tentativas, “erros” reveladores de uma intenção.
O objetivo deste acompanhamento era o desenvolvimento de um olhar individual, muito longe de impor uma idéia preconcebida do que deve ser “uma boa fotografia”.A técnica era adquirida no dia a dia, através os ensaios e tentativas de cada um, sem generalização normativa.
A única obrigação pelos jovens era o pedido, para cada um, de desenvolver sua própria expressão e temas de investigação, descobrir quais eram seus centros de interesse visuais, perseguir suas próprias obsessões até aparecer um conjunto de imagens que fizesse sentido.
Na época, trabalhávamos com câmeras antigas reflex com filmes Preto e Branco (que revelamos no laboratório do ateliê) e em cores (reveladas no laboratório profissional Speedlab, parceiro do projeto). A medida que os jovens vendiam suas fotos, juntavam dinheiro para comprar suas primeiras câmeras reflex digitais, e compor aos poucos suas ferramentas profissionais.
Paralelamente, tecemos parcerias com uma grande escola privada de fotografia do Rio de Janeiro : o Ateliê da Imagem, situado no bairro nobre da Urca. A medida que os mais motivados dos jovens investiam seu tempo na fotografia, encaminhamos eles para cursos técnicos, cursos de Photoshop, de tratamento digital. Ingressar no ateliê da imagem, se misturar com alunos mais ricos, encontrar fotógrafos profissionais e artistas que lá ensinam, foi um processo muito interessante tão para o Ateliê da imagem, que para os alunos dos bairros “nobres” que descobriam esses colegas dos “morros” e favelas. Dezenas de cursos foram cedidos pelo Ateliê da Imagem, ao longo dos anos.
No workshop da Olhares do Morro, se trabalhava a intenção, o conceito. Eu atuava como um treinador ou um “coach” de lutador, com uma atenção quase psico-analítica – e individualizada para cada autor.
A técnica mesmo – estava adquirida a medida do progresso dos jovens, e com as instituições parceiras, como o Ateliê da Imagem, ou ainda a Facha, faculdade de comunicação situada no mesmo bairro que o Santa Marta.
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